Amigos ou Inimigos no Futuro – W.Q.Judge
As doutrinas fundamentais da Teosofia não têm valor se não forem colocadas em prática na vida cotidiana. Na medida em que essa prática se estende, elas se tornam verdades vivas, bem diferentes das expressões intelectuais da doutrina. A mera compreensão intelectual pode resultar em orgulho espiritual, enquanto a doutrina viva se torna uma entidade através do poder místico da Alma humana. Muitas grandes mentes se debruçaram sobre isso. São Paulo escreveu:
“Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, e não tenha caridade, sou como o metal que soa ou como o címbalo que tine. E ainda que tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse caridade, eu nada seria. E ainda que eu distribuísse todos os meus bens para alimentar os pobres, e ainda que entregasse meu corpo para ser queimado, e não tivesse caridade, de nada me valeria.”
A “Voz do Silêncio”, expressando os pontos de vista das mais importantes escolas de ocultismo, nos pede que saiamos da luz do Sol para a sombra, a fim de abrir mais espaço para os outros, e declara que aqueles a quem ajudarmos nesta vida nos ajudarão na próxima.
As doutrinas do Carma e da reencarnação são os pilares de sustentação desses princípios. A primeira mostra que devemos colher o que semeamos, e a segunda, que voltamos na companhia daqueles com quem vivemos e agimos em outras vidas. São Paulo estava em total consonância com todos os outros ocultistas, e suas falas acima devem ser vistas sob a luz que a Teosofia lança sobre todos os escritos semelhantes. Contrariamente à caridade, que é o amor ao próximo, estão todas as virtudes e conquistas possíveis. Todas elas não são nada se a caridade estiver ausente. Por quê? Porque elas morrem com a morte da pessoa não caridosa; seu valor é nulo, e esse ser renasce sem amigo e sem recurso.
Isso é da mais alta importância para o teosofista sério, que pode estar cometendo o erro de obter benefícios intelectuais, mas continua sendo pouco caridoso. O fato de estarmos trabalhando agora no Movimento Teosófico significa que já o fizemos em outras vidas, que devemos fazê-lo novamente e, ainda mais importante, que aqueles que estão conosco agora reencarnarão em nossa companhia em nosso próximo renascimento.
Será que aqueles que conhecemos agora ou que estamos destinados a conhecer antes que esta vida termine, serão nossos amigos ou inimigos, nossos ajudantes ou obstrutores na próxima vida? E o que os tornará hostis ou amigáveis para nós, então? Não é o que diremos ou faremos para e por eles na vida futura. Pois ninguém se torna seu amigo em uma vida presente em razão apenas de seus atos atuais. Ele foi seu amigo, ou você foi amigo dele, em uma vida anterior. Seus atos atuais apenas reavivam a velha amizade, renovam o antigo compromisso.
Se ele era seu inimigo antes, ele o será agora, mesmo que você lhe preste ajuda agora, pois essas tendências duram sempre mais do que três vidas. Eles serão cada vez mais nossas suportes se aumentarmos o vínculo de amizade de hoje por meio da caridade. Suas tendências à inimizade serão diminuídas em um terço a cada vida se persistirmos na bondade, no amor e na caridade agora. E essa caridade não é uma doação em dinheiro, mas um pensamento caridoso para cada fraqueza, para cada fracasso.
Nossos futuros amigos ou inimigos, então, são aqueles que estão atualmente e que deverão estar conosco daqui para frente. Se forem aqueles que agora parecem hostis, estaremos cometendo um grave erro e só adiamos o dia da reconciliação mais três vidas se hoje nos permitirmos ser faltosos em caridade para com eles. Somos incomodados e prejudicados por aqueles que se opõem ativamente, assim como por outros cuja mera aparência, temperamento e ação inconsciente nos chateiam e nos perturbam. Nosso código de justiça para conosco, que muitas vezes não passa de uma maneira de ser mesquinha, nos incita a repreendê-los, criticar, atacar. É um erro agirmos assim. Se somente pudéssemos olhar adiante, para a próxima vida, veríamos aqueles para quem agora não temos senão escassa caridade cruzando a planície daquela vida conosco e sempre em nosso caminho, sempre escondendo a luz de nós. Mas se mudarmos nossa atitude atual, aquela nova vida que está por vir mostrará estes chatos e parcialmente inimigos e obstrutores nos ajudando, auxiliando em todos os nossos esforços. Porque o Carma pode lhes dar oportunidades maiores do que a nós mesmos e melhor capacitação.
Será que algum teosofista, que reflita sobre isso, será tão tolo a ponto de continuar no presente, se ele tiver o poder de mudar a si mesmo, um curso que criará uma safra de espinhos para a colheita na sua próxima vida? Devemos continuar com nossa caridade e bondade para com nossos amigos, a quem é fácil querer ajudar, mas em relação àqueles de quem naturalmente não gostamos, que são nossos aborrecimentos agora, devemos nos esforçar especialmente para ajudar e cultivar meticulosamente um sentimento de amor e caridade em relação a eles, o que acrescenta juros ao nosso investimento cármico. O rumo oposto, tão certo quanto o Sol nasce e a água corre colina abaixo, retira os juros da conta e insere um item pesado no lado errado do livro da vida.
E toda a organização teosófica deveria, especialmente, agir segundo as recomendações estabelecidas por São Paulo e “A Voz do Silêncio”. Porque a tendência cármica é uma lei inabalável. Ela nos incita a continuar nesse movimento de pensamento e doutrina; ela trará de volta para a reencarnação tudo o que hoje estiver nela. O sentimento não pode mover a lei um centímetro e, apesar dessa emoção possa tentar nos livrar da presença desses homens e mulheres que atualmente não gostamos ou aprovamos – e há muitos desses em nossas fileiras, para cada um -, a lei nos colocará novamente em companhia com tendências amigáveis ampliadas ou com sentimentos hostis diminuídos, assim como agora criamos o primeiro ou impedimos o último. O objetivo dos fundadores da Sociedade era despertar a tendência à amizade futura; esse deveria ser o objetivo de todos os nossos membros.
O que você terá? Na vida futura, inimigos ou amigos?
EUSEBIO URBAN (WQJ)
Path, janeiro de 1893