O Self é Amigo do Self e também seu Inimigo – W.Q.Judge
Essa frase no Bhagavad Gita foi muitas vezes deixada de lado por ser considerada ou sem sentido ou misteriosa; por um lado, inútil de se considerar, e por outro lado impossível. Alguns estudantes, no entanto, fizeram bom uso do ensinamento nela contido. É um verso que se apoia diretamente na Teosofia aplicada à nossa vida diária e, portanto, pode muito bem ser analisado.
Ela aponta dois selfs, um o inimigo e também o amigo do outro. Evidentemente, sem as sugestões encontradas na Teosofia, dois selfs em uma pessoa não podem parecer outra coisa senão sem sentido, exceto naqueles casos, admitidos pela Ciência, onde há uma aberração do intelecto, onde um lóbulo do cérebro se recusa a trabalhar com o outro, ou onde há algum desarranjo cerebral. Mas depois de um pequeno estudo da constituição do homem – material e espiritual – como o encontramos delineado na Religião-Sabedoria, vemos facilmente que se trata do Self Superior e do self inferior.
A injunção seguinte, a de “elevar o eu pelo eu”, aponta claramente para isso; pois, como uma coisa não pode se elevar sem um ponto de apoio, o Self que nos elevará deve ser o superior, e aquele a ser elevado é o inferior.
Com a finalidade de cumprir essa tarefa, precisamos obter conhecimento sobre o self que deve ser elevado. Quanto maior e mais preciso for esse conhecimento, mais rápido será o trabalho de elevar o ser que o tenta.
Vamos, por um momento, olhar para os obstáculos no caminho, os motivos pelos quais tantos têm o entendimento de si mesmos tão deficiente.
Todos sabem que alguém pode ver os defeitos nas ações e no caráter de outros homens melhor do que os seus próprios. Há alguns, é claro, que não admitem que tenham defeitos.
São Tiago disse que o homem olha em um espelho e logo esquece que tipo de homem ele é. Embora eu tenha muitas vezes duvidado disso, no entanto é verdade em relação a esse espelho que muitas vezes é segurado por outros para nós nos vermos. Vemos nossa aparência por um instante e depois a esquecemos.
No entanto, há algumas coisas a respeito das quais muitas vezes é impossível para nós mesmos nos conhecermos. Assim em relação aos nossos tons de voz, que são ásperos ou desagradáveis, e que muitas vezes não podemos ouvir como os outros ouvem. Porque mal há algo tão difícil quanto realmente ouvir nossa própria voz em sua totalidade de tom e de sotaque. Estamos tão acostumados a ela que não podemos dizer se é agradável ou desagradável, musical ou dissonante. Nós temos de confiar nas afirmações daqueles que a ouvem. De fato, duvido seriamente que alguém consiga ouvir plenamente, da maneira como aqueles a quem falamos, os tons de sua voz, porque ela nos é transmitida não apenas através do ouvido externo que recebe as vibrações feitas não por nós, mas a recebemos também através das vibrações feitas internamente através do crânio e, portanto, deve ser sempre uma voz diferente para nós mesmos. Portanto, não seria benéfico prestar muita atenção ao som de nossa voz se o fizéssemos, excluindo aquela postura interna que quase sempre determina o tom em que falamos; pois se nossos sentimentos forem amáveis e caridosos, é mais do que provável que a expressão vocal corresponda a esses sentimentos. A educação da voz, na medida do possível, pode tranquilamente ser deixada para aqueles professores que visam suavizá-la e aperfeiçoá-la.
Tomando alguns exemplos entre os muitos que nos rodeiam e assumindo que representam possíveis defeitos e peculiaridades próprias, podemos chegar a algo útil em nossa vida teosófica.
Aqui temos alguém que lhe dirá constantemente que vários outros sempre gostam muito de falar de si mesmos e de seus assuntos, e aparentam não se interessar pela conversa, a não ser que ela gire em torno deles. E depois de dessa forma ter descrito as falhas dos outros, esta pessoa – homem ou mulher – prossegue imediatamente mostrando que essa é sua própria falha, pois a partir daquele momento o peso da conversa é “eu” ou “meus assuntos”.
Nosso próximo assunto é sobre aquele que fala muito sobre altruísmo e fraternidade, mas que não daria um centavo para qualquer boa causa. Talvez não pela mesquinhez intencional, mas pelo puro hábito de não dar e de não ajudar.
Aqui temos outro que exemplifica o defeito proeminente do século, a falta de atenção. Ele escuta você, mas só ouve uma parte, e então, ao repetir o que ele diz você ter falado, ele dá uma versão inteiramente em desacordo com a sua. Ou, ouvindo uma briga ou uma discussão, ele só assiste àquela parte que, por lhe ser familiar, lhe é mais favorável.
Em seguida, temos o fanático que, embora exaltando a liberdade de pensamento e a unidade de todos os homens, exibe um fanatismo assustador.
Depois há outro que ilustra uma variação do primeiro ao qual me referi; – o homem que aparentemente só deseja impor seus pontos de vista a você e é despreocupado em saber quais possam ser as suas opiniões.
Aqui temos o fanático que beneficia tal escola ou grupo. Nada pode ser dito contra eles, nenhum defeito pode ser relatado. O fanatismo encobre tudo.
Agora todos esses são apenas exemplos; mas, em algum grau, cada um de nós os temos todos, talvez um pouco, mas ainda assim lá estão. Todos eles são o resultado da predominância do self inferior, pois todos eles mostram uma predisposição para colocar o eu pessoal à frente. Eles são o triunfo atual do self inferior sobre os esforços do superior. Eles podem ser reduzidos em algum grau pela atenção à sua manifestação externa, mas nenhum progresso real será obtido a menos que seja iniciado o trabalho no plano oculto. Um defeito tal como o de não ouvir muito os pontos de vista de outro homem, mas apressando-se para contar-lhe o que você mesmo pensa, é um que afeta a aquisição de novas ideias. Se você diz constantemente aos outros o que você pensa, não ganha nada, porque sua experiência e seus pontos de vista são seus, bem conhecidos para você. A expressão repetida deles só serve para imprimi-los mais fortemente em sua mente. Você não recebe nenhuma das novas luzes que outras mentes poderiam lançar sobre sua filosofia se você lhes desse a oportunidade.
Existem outros fatores em nossa constituição que são poderosos para a produção de falhas. Cada homem tem duas linhas de descendência. Uma é aquela que vem através de seus pais e tem a ver com sua constituição mental e física. Esta linha pode retornar aos lugares mais estranhos e peculiares, e ser encontrada entre modos e mentes não suspeitadas por nós. Suponha que sua linhagem de descendência física venha dos dinamarqueses ou noruegueses e a minha dos franceses. Haverá entre nós e até certo ponto uma falta de simpatia e apreciação no plano mental. É claro que este efeito não será aparente se o período de tempo for longo desde que nosso sangue correu naqueles corpos mas, ainda assim, haverá algum traço dele. Haverá sempre uma tendência para o físico, incluindo o cérebro, mostrar as características que resultam da preponderância de faculdades e disposições herdadas. Essas características pertencem inteiramente ao plano físico, e são trazidas desde os séculos passados por herança, afetando o corpo específico que você pode habitar em qualquer encarnação. É seu Carma de ter esse tipo de entorno sobre seu self interno. Agora, os obstáculos para a percepção da verdade e para a aquisição de conhecimento do self que é consequência da herança física, são difíceis de perceber, envolvendo muito estudo e autoanálise para trazê-los à tona. Mas eles estão lá, e o teosofista sério irá procurá-los. Essas diferenças no corpo físico que, por enquanto, vamos chamar de diferenças na herança, são da maior importância. Elas se assemelham às diferenças entre telescópios ou microscópios feitos por diferentes confeccionador de lentes, e tendem a nos levar a ver a verdade claramente ou embaçada ou cercada por muitas névoas coloridas. O que mais desejamos é um telescópio mental que não somente seja poderoso mas também destituído das cores, que a qualidade acromática somente irá dissipar.
A segunda linha de descendência é aquela que pertence puramente ao homem interno, ou seja, a linha psíquica. É obscura e, de fato, só pode ser descoberta e definida por um Adepto ou por um vidente treinado cuja clarividência lhe permita ver aquele fio intangível, mas poderoso, que tanto tem a ver com nosso caráter. É tão importante quanto a descendência física, na verdade, mais ainda, porque tem a ver com o homem eterno, enquanto que a morada física é selecionada por ou segue as ações que o homem interno obrigou o antigo corpo a realizar. Assim, ele pode facilmente ser alterado a qualquer hora se vivermos em obediência à lei superior.
Passando da ampla linha de descendência em uma nação, encontramos cada indivíduo também governado pelas peculiaridades e falhas familiares, e não são tão fáceis de definir como aquelas que são nacionais, uma vez que poucos homens estão munidos de quaisquer fatos suficientes para averiguar as tendências familiares gerais.
Descendo agora para nós mesmos, é quase axiomático que a mente de cada um age de uma maneira peculiar a si mesmo. Há uma tendência que se fortalece diariamente após nossos primeiros anos da mente entrar em uma rotina, em sua própria rotina ou modo de ver as coisas e ideias. Isso é de grande importância, porque o homem que libertou sua mente de forma que ela seja capaz de entrar facilmente nos processos de outras mentes tem maior probabilidade de ver a verdade mais rapidamente do que aquele que está preso a sua própria maneira de agir.
Devemos, então, nos tornar imediatamente nossos próprios críticos e oponentes, porque não é frequente que alguém esteja disposto ou seja capaz de assumir essa parte por nós.
Nosso primeiro passo e o mais difícil – na verdade impossível para alguns – é nos sacudir de tal forma que possamos rapidamente sair dos, ou melhor, compreender nossos próprios métodos mentais. Não quero dizer que devemos abandonar todo nosso treinamento e educação anteriores, mas que devemos analisar todas as nossas ações mentais de tal forma que possamos saber com certeza, perceber facilmente, a real diferença de método entre nós mesmos e qualquer outra pessoa. Hoje em dia, essa é uma coisa raramente empreendida e cumprida. Cada um se enamora de seus próprios hábitos mentais e não é inclinado a admitir que qualquer outro pode ser melhor. Quando nos familiarizamos com esse nosso caminho mental, estamos então em condições de ver se em algum caso em particular nossa visão é falsa.
Esse é o equivalente psicológico e metafísico daquele processo científico que classifica e compara, de modo a distinguir diferenças nas coisas para que as leis físicas possam ser descobertas. Pois enquanto permanecemos na ignorância do método e do curso das ações de nossa mente, não há como comparar com outras mentes. Podemos comparar pontos de vistas e opiniões, mas não o real mecanismo do pensamento. Podemos ouvir doutrinas, mas somos incapazes de dizer se aceitamos ou rejeitamos por raciocinar corretamente ou porque nossa peculiar inclinação no plano mental nos obriga a raciocinar totalmente de acordo com uma obliquidade mental adquirida por muitos anos de vida apressada.
A importância de assim compreender nosso próprio viés mental para que possamos desistir dele à vontade e entrar em um viés da mente de outra pessoa é visto quando consideramos que cada um de nós é capaz de perceber apenas um dos muitos lados que a verdade apresenta. Se permanecermos no viés, o que é natural, passamos por toda uma vida vendo a natureza e o campo do pensamento através de apenas um tipo de instrumento. Quando outro ser humano nos traz seus pensamentos, podemos não apenas examiná-los à nossa maneira, mas também tomar seu método e, adotando momentaneamente seu viés como o nosso próprio, enxergar muito mais.
É muito fácil ilustrar isso a partir da vida comum. O romancista vê nas salas de estar da sociedade e nos barracos dos pobres apenas o material que pode servir de base para um novo livro, enquanto o trapaceiro social afasta o pensamento dos barracos e vê na sociedade apenas os meios de gratificar o orgulho e a ambição, o artista, todavia, só consegue pensar no jogo de cores e nos arranjos das formas, a harmonia que encanta seu senso artístico.
O simples homem de negócios não é atraído pelos eventos complexos do dia a dia que não têm relação com seus assuntos, enquanto o estudante de ocultismo sabe que eventos muito obscuros apontam para outras coisas, ainda no futuro. Em cada classe social e em cada arte ou profissão sempre nos é lembrado que todo homem olha para qualquer assunto de apenas um ou dois pontos de vista, e quando uma mente bem equilibrada é encontrada olhando livremente para eventos, homens e pensamentos de todos os lados, todos vêem imediatamente uma superioridade na pessoa, embora talvez não sejam capazes de explicá-la.
Mas é especialmente no estudo Teosófico que é sábio nos elegermos críticos de nós mesmos e adotarmos, tanto quanto possível, a prática de deixarmos nosso próprio caminho mental e assumirmos algum outro. A verdade é simples e não tão difícil de alcançá-la se seguirmos os conselhos do Upanishad hindu e cortarmos o erro. O erro cresce em grande parte a partir de noções e preconceitos inculcados em nós por nossos professores e pelas nossas vidas.
A influência desses preconceitos é vista todos os dias entre aqueles teosofistas que buscam mais livros para ler sobre Teosofia. Suas mentes estão tão cheias de noções antigas que não são violentamente expulsas, de forma que a verdade não pode ser facilmente percebida. Mas se eles lessem menos livros novos e passassem mais tempo relendo aqueles que foram explorados inicialmente, enquanto se esforçam estudiosamente para entrar no pensamento todo do autor, se obteria muito mais progresso.
Tomemos, por exemplo, a “Chave para a Teosofia.” Está repleta das principais doutrinas da Religião-Sabedoria, e de alusões para outras. Muitas pessoas leram o livro e depois procuraram outro. Dizem que o dominaram. No entanto, se você lhes fizer algumas perguntas ou ouvir as suas próprias, é evidente que apenas aquela parte da obra que, de alguma forma, coincide com sua própria formação e linha de pensamento anterior foi compreendida. Agora, essa é exatamente a parte sobre a qual eles não precisavam se alongar porque, sendo consonante como eles próprios, pode ser compreendida a qualquer momento. Mas, se alguém for ser seu próprio crítico, então aquelas partes que parecem obscuras serão enfrentadas e, sendo vistas de todos os lados, podem logo se tornar um bem adquirido. E só porque essa não tem sido a prática, tornou-se fato que algumas publicações extremamente valiosas da doutrina e da filosofia permanecem enterradas em livros e revistas teosóficas anteriores, enquanto aqueles que as leram uma vez passaram febrilmente para outras obras e esqueceram o que poderia tê-los iluminado.
O teosofista que se deleita em chamar-se de prático e de lógico, um detrator do misticismo, deveria tentar ver o que significa o místico teosofista, e o místico deveria ler cuidadosamente as palavras do membro prático, com a finalidade de se contrabalançar. Uma mente totalmente prática ou inteiramente mística não é bem equilibrada. E enquanto o homem lógico e prático de nossas fileiras observar o misticismo e nunca o ler, ele permanecerá prejudicado e sem equilibro aos olhos daqueles que vêem ambos os lados, porque ele está envolvido em ideias e métodos que são apenas corretos em seus próprios campos. A atitude mental proposta não deve ser observada apenas em relação à nossa literatura e à filosofia estudada; deve ser a de todo instante e aplicável ao nosso convívio com nossos colegas, o que nos levará a discernir a falha comum de nos recusarmos a considerar os pensamentos expressos por outro porque sua personalidade é desagradável para nós. Podemos encontrar frequentemente em nossas fileiras aqueles que nunca prestam atenção a certos outros membros que decidiram que não conseguem raciocinar adequadamente ou falar claramente. Agora, além de todas as considerações de caridade e de cortesia, existe uma lei oculta muito perdida de vista, e que é a de que todos são inconscientemente levados pela lei cármica a se dirigirem aos outros sobre esses tópicos e a darem uma oportunidade à pessoa abordada de, por assim dizer, dar um salto fora de seu próprio caminho favorito, e considerando a vida conforme vista através dos olhos do outro. Mas se nos recusarmos a usar a oportunidade, seja fugindo totalmente ou cobrindo nossas mentes com uma capa dura de indiferença, a nova e brilhante ideia tão somente tremula no campo de nossa consciência é jogada de volta e perdida nos recessos escuros do plano mental. Ou, por outro lado, podemos, sob a lei cármica, ser a única pessoa apta a elucidar a ideia de nosso irmão, e continuamos a ser o devedor dele se não aceitarmos a oportunidade. Em qualquer caso, o demérito é o resultado.
Vamos então conquistar o self no campo apontado, e assim tornar o insidioso e enganador inimigo interno um amigo e guia constante.
WILLIAM Q. JUDGE
Branch Paper No.5, agosto 1890