Sua, até a Morte e depois, HPB – W.Q.Judge
Essa tem sido a maneira pela qual nossa amada professora e amiga sempre concluía suas cartas para mim. E agora, apesar de todos nós nos comprometermos a escrever algum relato daquela amiga e professora falecida, eu sinto sempre perto e sempre potente a magia daquele poder irrequieto, como o de um poderoso rio caudaloso, que aqueles que confiavam inteiramente nela sempre vieram a compreender. Deveras privilegiado, o Carma que, durante todos os anos desde que a conheci em 1875, me manteve fiel à amiga que, disfarçada sob o traje mortal exterior conhecido como H.P.Blavatsky, foi sempre fiel a mim, sempre amável, sempre a professora e a guia.
Em 1874, na cidade de Nova Iorque, eu encontrei H.P.B. nesta vida pela primeira vez. A seu pedido, enviado através do Coronel H.S.Olcott, a chamada foi feita em seus aposentos em Irving Place, quando então, assim como depois, durante o resto da sua carreira tempestuosa, ela foi rodeada pelos ansiosos, os intelectuais, os boêmios, os ricos e os pobres. Foi o seu olhar que me atraiu, o olhar de alguém que eu devia ter conhecido em vidas que há muito se foram. Ela olhou para mim com ar de reconhecimento à primeira vista e, desde então, esse olhar nunca mais mudou. Não cheguei perante ela como um questionador de filosofias, não como alguém tateando no escuro por luzes que as escolas e teorias fantasiosas tinham obscurecido, mas como alguém que, vagueando por muitos períodos pelos corredores da vida, procurava os amigos que pudessem mostrar onde os esboços para o trabalho tinham sido escondidos. E fiel ao chamado que ela atendeu, revelando mais uma vez os planos, e sem usar palavras para explicar, simplesmente apontou-os e prosseguiu com a tarefa. Era como se tivéssemos nos separado apenas na noite anterior, deixando ainda por fazer alguns pormenores de uma tarefa assumida com uma finalidade comum; era professora e aluno, irmã mais velha e irmão mais novo, ambos empenhados em uma só finalidade, mas ela com o poder e o conhecimento que pertencem apenas aos leões e aos sábios. Então, amigos desde o princípio, me senti seguro. Outros que conheço olharam com desconfiança para uma aparência que não conseguiam desvendar e, embora seja verdade que apresentaram muitas provas que, abraçadas ao peito, condenariam sábios e deuses, no entanto, é apenas por cegueira que não conseguiram ver o olhar do leão, o coração de diamante de H.P.B.
Todo o espaço dessa revista inteira não seria suficiente para me facultar registrar os fenômenos que ela realizou diante de mim durante todos esses anos, nem gostaria de registrá-los. Como ela tantas vezes disse, eles não provam nada, mas apenas levam algumas Almas à dúvida e outras ao desespero. E, novamente, penso que não foram feitos apenas para mim, mas somente que, naqueles dias iniciais, ela estava estabelecendo as linhas de forças por toda a Terra e eu, tão agraciado, estava no centro da energia e vi o jogo de forças em fenômenos visíveis. Foi dada a explicação, por alguns amigos demasiadamente ansiosos, de que os fenômenos anteriores eram erros de julgamento, que se tentou corrigir em anos posteriores, confinando o seu âmbito e limitando a sua quantidade, mas até que alguém demonstrar na escrita de H.P.B. a sua concordância com esse ponto de vista, manter-me-ei fiel à sua própria explicação feita anteriormente e nunca alterada que eu forneci acima. Para muitos é mais fácil refugiar-se atrás de uma acusação de mau julgamento do que compreender as estranhas e poderosas leis que controlam assuntos como esses.
Em meio a toda a turbulência da sua vida, acima do alvoroço produzido por aqueles que a acusaram de engano e de fraude, e por outros que a defenderam, enquanto mês após mês, e ano após ano, testemunhou homens e mulheres entrando no movimento teosófico apenas para rapidamente o deixar com frases maldosas contra H.P.B, existe um fato que todos nós podemos imitar – a devoção absoluta a seu Mestre. “Foi Ele”, escreve ela, “que me disse para me dedicar a isso, e nunca desobedecerei e nunca voltarei atrás.” Em 1888 ela escreveu-me em particular:
“Bem, meu único amigo, devias saber melhor. Olha para a minha vida e tenta entendê-la – pelo menos no seu decurso externo, pois o resto está oculto. Estou sob a maldição de sempre escrever, como o Judeu errante estava sob a maldição de estar sempre em movimento, nunca parando um momento para descansar. Três pessoas comuns e saudáveis dificilmente poderiam fazer o que eu tenho de fazer. Vivo uma vida artificial; sou um autômato correndo, a todo vapor, até que o poder de gerar vapor termine, e depois – adeus!…Anteontem à noite foi-me mostrada uma vista aérea das Sociedades Teosóficas. Vi alguns teosofistas de confiança numa luta mortal com o mundo em geral, com outros teosofistas, nominais mas ambiciosos. Os primeiros são em maior número do que se possa pensar, e eles triunfaram, assim como vocês triunfarão na América, desde que permanecerdes firmes no programa do Mestre e fiéis a vós próprios. E ontem à noite vi e agora sinto-me forte – tal como estou no meu corpo – e pronta para lutar pela Teosofia, e pelos poucos verdadeiros, até ao meu último suspiro. As forças defensoras têm de ser criteriosamente – são tão escassas – distribuídas pelo mundo, onde quer que a Teosofia esteja lutando contra os poderes das trevas”.
Ela sempre foi assim; dedicada à Teosofia, e a Sociedade organizada para levar a cabo um programa que, no seu âmbito, abraça o mundo. Disposta, no serviço à causa, a sacrificar esperança, dinheiro, reputação, a própria vida, conquanto a Sociedade pudesse ser salva de qualquer dano, fosse pequeno ou grande. E assim vinculada de corpo, coração e Alma a essa entidade chamada Sociedade Teosófica, obrigada a protegê-la de todos os perigos, diante de qualquer perda, muitas vezes incorria no ressentimento de muitos que se tornavam seus amigos, mas nem sempre se preocupavam com a recém-nascida organização, conforme ela tinha jurado fazer. E quando agiam como se fossem contrários à Sociedade, a sua imediata oposição parecia-lhes anular as declarações de amizade. Assim, ela tinha apenas poucos amigos, porque isso exigia uma perspicácia afiada, sem qualquer sentimento pessoal, para enxergar mesmo que uma pequena parte da verdadeira H.P.Blavatsky.
Mas será que o seu objetivo era apenas o de formar uma Sociedade cuja força deveria residir nos números? Não. Trabalhou sob a direção de diretores que, operando por trás da cena, sabiam que a Sociedade Teosófica era, e seria, o núcleo a partir do qual a ajuda se poderia estender a todas as pessoas da época, sem agradecimentos e sem reconhecimento. Uma vez, em Londres, perguntei-lhe qual era a possibilidade de atrair as pessoas para a Sociedade, tendo em conta a enorme desproporção entre o número de membros e os milhões na Europa e na América que não conheciam nem se preocupavam com ela. Recostando-se na cadeira em que estava sentada frente a sua escrivaninha, ela disse:
“Quando você considera e recorda aqueles dias em 1875 e depois, em que não se encontrava nenhuma pessoa interessada em suas concepções e olha agora para a ampla influência das ideias teosóficas – seja qual for o rótulo – não é assim tão mau. Não estamos trabalhando apenas para que as pessoas se autodominam teosofistas, mas para que as doutrinas que acarinhamos possam afetar e imbuir todo o pensamento desse século. Isto só pode ser conseguido por um pequeno grupo de trabalhadores, que trabalham por nenhuma gratificação humana, sem reconhecimento terreno, mas que, apoiados e amparados por uma crença naquela Irmandade Universal da qual os nossos Mestres fazem parte, trabalham de forma constante, fiel, na compreensão e consideração das doutrinas da vida e do dever que nos chegaram desde tempos imemoriais. Não fraquejam, contanto que alguns poucos trabalharão para manter o núcleo existindo. Você não foi orientado para fundar e concretizar a Fraternidade Universal, mas para formar o núcleo de uma; pois somente quando o núcleo será formado é que os acréscimos podem iniciar, os quais terminarão em anos futuros, por mais distantes que estejam, na formação daquele corpo que temos em vista”.
H.P.B. tinha um coração de leão e, para o trabalho que lhe foi delineado, ela tinha a garra do leão; vamos, nós, os seus amigos, companheiros e discípulos, apoiarmo-nos na execução dos desígnios estabelecidos na prancheta, pela memória da sua devoção e pela consciência de que por trás da sua tarefa estavam, e ainda permanecem, aqueles Irmãos Mais Velhos que, acima do barulho e do alvoroço da nossa batalha, sempre enxergam a finalidade e direcionar as forças dispersadas em um conjunto para a salvação “daquele grande órfão – a humanidade”.
WILLIAM Q. JUDGE
Lucifer, junho 1891